espaço e no tempo, de um corpo numa situação de representação, na condição de narrar, dizer,
representar através de um sistema semiótico asemântico altamente comunicativo.
A dança, sendo a linguagem do corpo, vive exclusivamente na ação dos executores e identifica-se
com ela totalmente; in particular, quando vira expressão artística, realiza-se sempre naquela ou
naquele que dança, então nunca poderá ser “descorporada” do dançarino ou da dançarina. O corpo
que dança, dentro ou fora da cena, quando se entrega ao olhar do público ele não o faz de maneira
ingênua ou primitiva, nem nas suas formas mais arcaicas: é um corpo treinado, preparado para sua
presença ser eficaz e então dotado de um inevitável virtuosismo e artificialidade que põe a
performance na situação fora do quotidiano, para fim de iniciar um processo conotativo de natureza
simbólica. O corpo do homem, de fato, não é regulado somente pelas estruturas biológicas, mas
encarna a ordem da linguagem, para isto as ações envolventes no ato performativo resultarão da
integração entre físico e espírito. Na dança pode-se talvez colher a intencionalidade originária que
dá vida à expressão lingüística, não como linguagem verbal estruturada, mas como ato constitutivo
da comunicação significante; gesto, movimento primordial que rompe a treva relacional e o seu
silêncio. Na ação da coreografia evoca, em fim, o movimento intencional de uma consciência
encantada e se expressa a essência emocional dos objetos que se revelam para ela
4
.
Na história da coreografia, muitos artistas refletiram sobre a natureza da dança, em particular no
último século, quando se desenvolveu um “movimento” antitético respeito à disciplina acadêmica. A
recusa eversora da tradição, personificada pela Isadora Duncan
5
, célebre bailarina americana do
primeiro Novecentos, também encontra na Europa o clima cultural apto para se desenvolver; a aventura
das vanguardas já começou e com ela o Novecentos assumiu o seu caráter fundamental, tornando-se o
século da contestação. A estética da dança que a Duncan vai elaborando através dos seus escritos e a sua
intensa atividade artística tem como ponto de partida a idéia, própria do temperamento cultural entre
Oitocentos e Novecentos, de um mítico estado originário de harmonia natural, do qual o homem seria-se
progressivamente afastado e ao qual deve retornar se não entende perder definitivamente a possibilidade
de redenção e salvação. Isadora cria uma linguagem extremamente pessoal, dançando em maneira
instintiva, selvagem, mística, sem regras esquemas ou técnicas, apresentando-se para o público sem
sapatos, pisando nos palcos mais importantes descalça e coberta somente por uma simples túnica branca
semitransparente (coisa que fez muito barulho para a mentalidade conservadora do Ocidente de início
século, ainda acostumada à figura etérea da Sílfide com sapatilhas na ponta, sempre ladeada por uma
enérgica figura masculina).
4
E. BUCLI, Corporeità e conoscenza. Nota sulla posizione della filosofia fenomenologica, em ALESSANDRO
PONTREMOLI a cura de, Drammaturgia della danza. Percorsi coreografici del secondo Novecento, Euresis Edições,
Milão 1997.
3
5
Isadora Duncan (San Francisco, California, 1877 – Nice, França, 1927).
De certo não foi somente a Duncan evidenciar uma revirada na interpretação do movimento no
Ocidente, mas ao redor dela, se não precedentemente, registraram-se numerosos impulsos
revolucionários que deram vida às escolas de pensamento além das verdadeiras e próprias
associações para o ensino e a promoção de novas “fórmulas” para a dança. Não há dúvida que a
dança contemporânea encontrou as bases a partir próprio deste turbamento de algumas
personalidades que produziram novos impulsos no início do século passado; o forte chamado à re-
apropriação do corpo é uma admoestação para o homem, porque recupere o senso da própria
humanidade, como do resto poder-se-á encontrar com maior consciência a partir dos anos Trinta
com a afirmação da modern dance. Esta liberdade de poder dançar fora dos esquemas preconceitos
da danse d’école, não indica exclusivamente desabafar livremente, através ímpetos espontâneos e
movimentos não controlados, para sentimentos e paixões mas, sobretudo, dar vida para uma nova
linguagem que fosse a forma de uma nova corporeidade:
O expoente da dança moderna deve combater contra duas coisas. Uma é a convicção que ela
significa simplesmente expressar si mesma, e a outra que não necessita de alguma técnica. A
dança tem duas caras, uma é a ciência do movimento, a técnica que é uma ciência exata e deve
ser aprendida muito cuidadosamente, e a outra é a distorção destes princípios, o uso desta
técnica obrigada por uma emoção
6
.
A dança moderna, que conduziu a sua primeira batalha proclamando a urgência de libertar o bailarino de
cada código pré-constituído, acaba assim com criar outros códigos, porque cada linguagem, para ser tal,
implica necessariamente um código. O verdadeiro fim da batalha não era aquele de suprimir totalmente
a instituição das normas, mas de substituir a linguagem da dança acadêmica com um outro ou com
outros códigos mais correspondentes ao espírito mudado dos tempos.
É com Martha Graham
7
e os outros expoentes da modern dance americana nos anos Trinta do
Novecentos que se põe a atenção sobre um novo centro do impulso expressionista. A dança moderna
não é um sistema estandardizado, mas a proposta de muitos pontos de vista sobre o movimento, cada
um em qualquer maneira legitimado pela pesquisa de uma verdade do gesto e da expressão, que têm a
fonte deles na vida e buscam dar forma estética ao vivido pessoal do artista. A dança criada pela
Graham e pelos seus contemporâneos parece responder a todos os requisitos da verdadeira arte do
corpo, experiência estética da percepção de alguma coisa até então nunca percebida, movimento no
espaço e no tempo que se volta para todos os sentidos, mas não somente para eles, e explora-os como
canais para render comunicável uma dimensão interior
8
. A lição da Graham será como exemplo para as
gerações futuras, mas também como motivo de insatisfação e oposição.
6
São palavras de Martha Graham citadas em M.LLOYD, Martha Graham, em The Borzoy Book of Modern Dance,
Knopf, New York 1949, reportadas em ALESSANDRO PONTREMOLI, La danza, Editori Laterza, Roma-Bari 2004,
p. 86.
7
Martha Graham (Allegheny, Pennsylvania, 1894 – New York, 1991).
4
8
Ivi, p. 95.
Uma menção a respeito, é devida para Merce Cunningham
9
, filho “rebelde” da Graham,
personalidade também central na evolução hodierna da dança contemporânea. A ação de
Cunningham, considerada eversiva assim na vertente tradicional como na vertente moderna, funda-
se no princípio que a dança não é uma linguagem representativa, mas um evento o qual há o seu
significado em si mesmo. Não deve “contar” nada mas somente acontecer; desenvolvendo-se assim
um movimento contra-emotivo e contra-narrativo, puro dinamismo no espaço, além de cada
motivação emocional. A recusa da dimensão interior como motor dramatúrgico e das emoções
como éxito da narração, leva a conceber a dança como arte do rigor formal, arte da abstração, livre
de qualquer condicionamento ideológico, sem pretensões didascálicas ou intenções descritivas. Na
sua concepção coreográfica, espaço e tempo devem estar no centro do interesse do dançarino e do
espectador; o espaço é circular e não limitado à tradicional perspectiva frontal teatral; o desenho
coreográfico, aliás, deve ter muitos focos; a música, a dança, a cenografia, não são mais ancilas uma
da outra, mas convivem com par dignidade e liberdade, sem relação alguma; as frases coreográficas
estudadas rigorosamente, podem ser ordenadas sem uma seqüência fixa preestabelecida; o
vocabulário dos movimentos alcança tanto à técnica clássica para pés e pernas, quanto àquela
moderna para a bacia e o busto. Este pretendido abstratismo, que funda as suas raízes na
intencionalidade não comunicativa de John Cage
10
, não pode renunciar ao sujeito; os mesmos
materiais sonoros, também quando gerados com procedimentos eletrônicos, ou coincidem com o
concretismo dos barulhos ou ainda são negados no silêncio, na extrema formalidade e artificialidade
deles reenviam a um sujeito intencional
11
. A distinção entre sujeito e objeto é, de fato, interior à
intencionalidade da consciência, em quanto à consciência é sempre consciência do ser e das
maneiras nas quais o ser dá-se à consciência. Cada evento artístico proposto para um público,
também se programaticamente “não-comunicante”, realiza-se num evento representativo, mediante
um corpo que expressa, no movimento de contínuo deslocamento de perspectiva, um ponto de vista.
Isto consente de colher o evento nos seus diferentes aspectos ou, como no caso da música e da
dança, no seu abrir-se temporal. Necessita então reconhecer um senso que se deixa colher nas
diversas perspectivas.
9
Merce Cunningham (Centralia, Washington, 1919).
10
JOHN MILTON CAGE, (Los Angeles, 5 de setembro de 1912 – Nova York, 12 de agosto de 1992) compositor de
música experimental e escritor.
5
11
Interessantes, a propósito, são dois dos trabalhos mais célebres de John Cage: “Imaginary Landscape n°”1 (1939) no
qual o musicista utiliza as novas tecnologias eletrônicas para a produção sonora aos fins de aproximar-se o mais
possível aos sons que se possam perceber num ambiente urbano; “4:33” (1952) exatamente quatro minutos e trinta e
três segundos de silêncio, no qual o verdadeiro e próprio concerto é constituído pelos barulhos de baixo-fundos
provindos dos espectadores na platéia.