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O que proponho investigar é uma das respostas ao problema ético da relação entre
valores e fatos ou, em outros termos, da relação fundamental entre dever e ser, centralizando-a
na obra do fundador da metaética analítica: George Edward Moore (1873-1958).
A resposta de Moore - apresentada inicialmente em seu livro Principia Ethica (1903) - à
relação entre esses dois campos lança um desafio ou, como interpretada contemporaneamente2,
de forma mais modesta, um empecilho a qualquer tentativa naturalista de “fundamentação” da
Ética, ao negar a possibilidade de redução do campo propriamente ético (aquele cujas
proposições envolvem termos como virtude, vício, dever, bom e mau) ao campo do ser (regido
por propriedades naturais e abordado pelas diversas ciências como a física, a biologia, a psicologia
e a sociologia).
Se esse resultado é alcançado, Moore o faz, no entanto, de modo diverso das estratégias
usuais visando não uma defesa de uma brecha radical entre ser e dever, o que caracteriza, por
exemplo, a resposta humeana3, nem mesmo defendendo alguma versão não-cognitivista que
coloca a Ética fora do campo da razão e das justificações4, mas prioritariamente:
2 Segundo Darwall, Gibbard e Railton:1992 e Hospers:1990, p. 348, a teorização de Moore não seria um
argumento contra o naturalismo, mas um recurso metodológico. Para Sobel, a proposta de Moore causa
um “embaraço” ao naturalismo (Sobel:2003).
3 Ou, ao menos, a leitura tradicional que se faz das primeiras seções do terceiro livro do Tratado da
Natureza Humana. De qualquer forma, grande mistério do Principia é a ausência, tanto de David Hume,
quanto dos moralistas ingleses do século XVIII, pace à epígrafe da obra retirada do Bispo Butler.
4 Pelo contrário, Moore, logo na abertura do Principia, defende como tarefa primordial da Ética “to give
reasons for thinking that our statements about the character of persons or the morality of actions are true
ou false”. PE, §1. Em NMP ataca tanto o não-cognitivismo quanto o relativismo ético: “This view,
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(1) mostrando os equívocos, em uma verdadeira rejeição, do que chamarei, de forma a
deixar mais claro os limites da teorização de Moore, do reducionismo (que envolve formas de
naturalização redutora mas outras propostas também) pela falácia naturalista e pelo argumento da
questão aberta; e
(2) apresentando uma hipótese para o modo como o campo autônomo da Ética se
relaciona com o campo do ser e com as propriedades naturais sendo que esse segundo aspecto da
teorização mooreana deve ser entendido no contexto de um desenvolvimento de suas posições
que o levaram a esboçar a noção de superveniência moral.
Esses dois momentos, que integram a defesa mooreana da especificidade da Ética, que é a
intuição de Moore que dá unidade a sua obra ética, estão inseridos em algo maior que é o próprio
projeto mooreano de compreensão da tarefa da filosofia enquanto um saber capaz de produzir
conhecimento acerca da realidade ou daquilo que Moore prefere chamar de “Universo”:
Parece-me que a coisa mais importante e interessante que os
filósofos tentaram fazer é nada menos do que isto: apresentar uma
descrição geral do conjunto do Universo, mencionando todos os tipos
mais importantes de coisas que sabemos estar nele, considerando em que
medida é provável que existam nele tipos importantes de coisas que
absolutamente não sabemos estar nele, e considerando também os
modos mais importantes em que estes vários tipos de coisas estão
relacionados entre si. [It seems to me that the most important and
interesting thing which philosophers have tried to do this no less than
this; namely: To give a general description of the whole of the universe,
mentioning all the most important kinds of things which we know to be
in it, considering how far it is likely that there are in it important kinds of
things which we do not absolutely know to be in it, and also considering
the most important ways in which these various kinds of things are
related to one another] (SMPP, p.1).
Assim, diferentemente do projeto que predomina desde o positivismo lógico5 e da
epistemologia naturalizada de Quine (e esse é um motivo para voltarmos a prestar atenção à sua
ética, mas também àqueles textos onde ele descreve sua compreensão do mundo), a formulação
therefore, implies that it is impossible for two men belonging to different societies ever to differ in
opinion on a moral question. And this is a view which I find it almost as hard to accept as the view that
no two men ever differ in opinion on one” (NMP, p. 336).
5 Aliás, a síntese do positivismo lógico realizada por Ayer, apresenta uma versão, mesmo que preliminar,
de um importante capítulo do desenvolvimento da teoria ética do século XX que foi a doutrina emotivista.
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mooreana reserva um lugar para as “disciplinas” que apelam para outras qualidades ou
propriedades além das “naturais”. Segundo Stroll,
Em contraste com o cientificismo desenfreado da filosofia atual,
exemplificado pela epistemologia naturalizada de Quine, que sustenta
que a filosofia é apenas uma extensão da ciência, ou variações ainda mais
radicais que negam qualquer validade descritiva da filosofia, Moore
apresenta uma poderosa defesa da autonomia da filosofia como capaz de
nos fornecer uma verdadeira descrição do Universo (Stroll:1994, p. 15).
Essa capacidade da filosofia de fornecer uma descrição do Universo que nos cerca é
constantemente retomada por Moore na fundamentação de sua teorização ética e teremos
oportunidade de estudá-la no que se segue, uma vez que uma das hipóteses dessa dissertação é
que a compreensão da ética de Moore só pode ser alcançada com um recurso a essa descrição. É
ela que esclarece o passo fundamental para a Ética que é a sua compreensão da composição do
Universo (enfim, as coisas, as proposições e as relações6) e aí, finalmente, a compreensão do que
sejam as propriedades naturais e as propriedades não-naturais.
Afora isso, a compreensão da simplicidade e indefinibilidade da bondade (‘good’)7 passa
por uma compreensão dessa propriedade como algo sui generis inserido na própria estrutura, uma
“teia de conceitos”, do universo.
O quadro que se revela com essa investigação implicará na revisão da leitura apressada8
do Principia Ethica e, em geral, da ética mooreana como uma defesa da Ética contra a
naturalização. Longe disso, a crítica de Moore é feita contra reducionismos que, partindo tanto
das ciências como do interior da própria filosofia, caso das éticas de cunho metafísico,
empobrecem, até mesmo de modo perigoso, a nossa descrição do universo. Assim, temos um
6 Sobre o uso mais ou menos vago dos termos proposição, propriedade, conceito, coisa, noção e idéia ver
mais abaixo (em 1.2 e no apêndice ao final da dissertação) a discussão sobre alguns problemas da
concepção mooreana. Ver também Baldwin:2004.
7 Moore apresenta uma série de termos sinônimos: ‘good’, ‘intrinsic value’, ‘ought to exist’, ‘absolutely
good’ e ‘good in itself’. Esses termos são também sinônimos de expressões tais como “the greatest good
of which the circunstances admit”. Para uma lista ainda mais completa indico o artigo de Abraham Edel
(in: Schilpp:1952). Traduzo esse termo como bondade de forma a enfatizar o que compreendo Moore está
destacando como seu significado: a propriedade única e elementar da Ética.
8 Dall’Agnol (Dall’Agnol:2005, p.21) faz um pot-pourri de depoimentos sobre as conseqüências dessa leitura
apressada.
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Moore realista, porém mais próximo de uma versão do realismo moral que não rejeita por si o
naturalismo, mas algumas das aplicações extremadas que esse último assume. Por assim dizer,
Moore rejeita Spencer e não Darwin (PE §30) 9.
Tendo em vista esse contexto de uma defesa veemente da tarefa da filosofia e da
especificidade da Ética, a dissertação se estrutura de forma a esclarecer a argumentação mooreana
contra o reducionismo.
O primeiro capítulo é dedicado ao aprofundamento da correlação entre a tarefa da
filosofia e sua teorização ética, além de abordar algo essencial em ambas as investigações, a saber,
qual método serve de instrumento para levar a cabo tais investigações.
Quanto a esse primeiro passo, deixo claro, o que, creio, se configura um equívoco dos
intérpretes que caracterizam a Ética mooreana sem um recurso a sua concepção do Universo. A
meu ver esse tipo de recorte perde a própria possibilidade de compreensão do projeto de Moore
que fica então sob alvo de escárnio e chacota pelo ridículo de suas conclusões. Ora, se essas
conclusões são assim compreendidas, isso se deve a terem ido buscar os fundamentos da Ética de
Moore nas breves páginas do primeiro capítulo do Principia Ethica onde, na verdade, é impossível
encontrá-los.
Assim, a Ética de Moore é feita como parte de um projeto não reducionista, e é somente
aí que há uma crítica ou revolta contra o naturalismo, baseada na falácia naturalista e no
argumento da questão aberta; crítica que, aliás, como veremos no capítulo final da dissertação,
deve ser matizada. Mais ainda: esse aspecto não reducionista é a grande constante da teorização
metaética de Moore, assim como, no aspecto normativo propriamente dito, a defesa do que hoje
chamaríamos de cognitivismo. Sua defesa de uma autonomia ou, melhor ainda, de uma
especificidade da Ética, o que torna inclusive plausível a ciência da Ética que formula, perpassa
9 Como veremos com maior detalhe no capítulo 2, o que Moore rejeita na ética evolucionista de Spencer é
o salto, que para Moore, não se encontra em Darwin, entre a afirmação de que ‘x é mais evoluído’ para a
afirmação de que ‘x é superior’. O exemplo que Moore fornece é primoroso no contexto de sua época: o
fato de podermos matar os índios norte-americanos mais facilmente do que eles nos matam não significa
que estejamos mais evoluídos na busca pelos fins éticos. Dennett:1995, p.466, apresenta algo análogo.
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seus escritos desde o Principia até sua “Reply to my critics” onde, respondendo a C. D. Broad,
reafirma, espantosamente dado o contexto de voga do emotivismo em que se deu a sua
publicação e ao seu silêncio de quase 40 anos quanto à questões éticas, sua posição inicial.
Os textos de Moore a serem trabalhados nesse capítulo são: (1) as preleções realizadas em
1911 e publicadas em 1953, que constituem o livro Some Main Problems of Philosophy e (2) partes
selecionadas dos seus primeiros textos publicados; entre eles, seções do Principia e de seus artigos,
onde discute suas concepções ontológicas e metodológicas (em especial as questões relativas à
definição conceitual como instrumento para o trabalho do filósofo). As datas desses escritos
variam entre 1898 (ano de “The Nature of Judgment”) e 1903 (ano de publicação, tanto do
Principia, quanto de “The Refutation of Idealism”).
O segundo capítulo da dissertação é dedicado a analisar as bases da rejeição mooreana de
toda e qualquer redução da Ética. Faremos isso por meio da análise de sua tese principal: a de que
a história da Ética está permeada por uma falácia e de que há uma forma de comprovar o caráter
único do campo da Ética através do argumento da questão aberta (que confirmaria a bondade como
propriedade única, simples e inanalisável).
O problema são as incertezas acerca das formulações mooreanas de seus principais
argumentos. Entre os diversos sentidos que a falácia certamente possui, Rohatyn chega ao
número expressivo de doze significados diferentes (Rohatyn:1987) e Baldwin, seguindo o
prefácio que Moore escreveu em 1922 para uma segunda edição do Principia (PE2), considera ao
menos três que se entrecruzam na obra de forma irredutível (Baldwin:1991, p.70).
Assim, afirma Moore:
No que se refere à ‘falácia naturalista’, confundi as seguintes três
afirmações: (1) “Fulano identifica Bondade com um predicado que não é
B”, (2) “Fulano identifica Bondade com um predicado analisável” e (3)
“Fulano identifica Bondade com um predicado natural ou metafísico”.
[... with regard to the ‘naturalistic fallacy’, I confuse the three assertions:
(1) ‘So and so is identifying G with some predicate other than G’, (2) ‘So
and so is identifying G with some analyzable predicate’, and (3) ‘So and
so is identifying G with some natural or metaphysical predicate’] (PE2,
p.16-17).
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Como veremos, a diversidade das formulações mooreanas sobre a falácia implica,
necessariamente, uma escolha hermenêutica. Essa escolha não ocorre, no entanto, de forma
puramente arbitrária, haja vista a possibilidade de nos referirmos; seja aos textos que fornecem
indicações das origens e motivos de suas concepções; seja aos textos onde reformula,
respondendo a seus críticos ou em busca de maior clareza, suas teses iniciais.
Por naturalização da Ética, entendemos com Moore, todas aquelas tentativas de redução -
mais ou menos fortes - da Ética a um ou a outro campo dos estudos científicos ou “as teorias
éticas que proclamam que o único bem consiste numa dada propriedade das coisas, que existe no
tempo; e proclamam-no com base na suposição de que a bondade pode ser definida em função
dessa propriedade” (PE §27). Assim, há tentativas biologizantes (como as de Dennett, de forma
mais fraca e mais complexa, e as da sociobiologia, de forma mais radical), psicologizantes (como as
abordagens behavioristas exemplificadas em Walden II) e sociologizantes (como as teses marxistas).
No Principia, os autores contemporâneos a Moore criticados possuem posições que apresentam
certas analogias a essas. Assim, Spencer pode ser compreendido como alguém que “naturalizaria”
a Ética por meio da Biologia e de certa sociologia; Aristóteles e os utilitaristas teriam paralelos, ao
adotar a virtude ou o prazer como definindo ‘bom’, a alguma posição psicologizante.
A abordagem mooreana às teorias que cometem a falácia “naturalista” é feita, no entanto,
de forma mais ampla e complexa, como fica claro na extensão que ele dá ao argumento
abarcando também teorias metafísicas como o kantismo e algumas formas de idealismo ou
qualquer outra que confunda bondade, esse predicado simples, com qualquer outro predicado,
mesmo que esse outro predicado pertença também ao campo “das coisas que pura e
simplesmente não existem”.
É necessário, portanto, perguntar o que há de comum entre essas teorias. E o que há de
comum a essas diversas teorias é identificar ou definir equivocadamente algo único e indefinível
com alguma outra coisa. A isso Moore chamará de falácia naturalista. O que defendo, portanto, é
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que a compreensão da falácia como uma redução ou identificação indevida, ou seja, uma
identificação da bondade, entendida nas bases dos esclarecimentos fornecidos no capítulo 1, com
um predicado outro que não a bondade, apresenta primazia como um guia para a leitura do
Principia frente à tradicional interpretação da argumentação mooreana como uma refutação do
naturalismo. Essa compreensão apresenta a vantagem de se adaptar ao que Moore insiste, em
diversos momentos da obra, da falácia ser algo bem simples de se perceber e de se evitar,
espantosamente não percebido anteriormente10.
Assim, tomando a falácia como um erro de identificação (afinal, Moore rejeitará
posteriormente o seu próprio uso do termo “falácia”11), entendemo-la como a má compreensão
de que, apesar da província da Ética estar sempre, de alguma forma, associada a propriedades
como as naturais ou metafísicas (afinal, a bondade não é sem mais, dependendo temporalmente
de um “substrato” natural), ela possui uma especificidade e é irredutível. Isso, porque o
fundamento da Ética, a bondade, é algo simples e único. E ser “algo simples e único” na
formulação mooreana é estar presente de forma irredutível na própria estrutura do universo, ou
seja, é ser algo co-extensivo apenas com si mesmo.
A remissão à concepção do Universo de Moore, apresentada no Capítulo 1 da
dissertação, é então fundamental e a interpretação da falácia como um erro deste tipo é
compatível com essa visão. Para o filósofo, o Universo é composto por conceitos simples e pelas
diversas relações e pelos graus de associação entre esses conceitos que formam a diversidade que
o Universo aparenta. Um quadro completo dessas propriedades e das relações que mantêm entre
si é a tarefa da filosofia e das diversas disciplinas que a compõem. No caso da ciência da Ética, a
propriedade privilegiada é a “bondade” e o modo da investigação somente pode ser aquele que
“ou afirma em que grau as coisas em si possuem esta propriedade, ou então, afirma haver
relações causais entre outras coisas e aquelas que a possuem” (PE, § 23). E as teorias que
10 Com as exceções de Sidgwick (PE, §14 e também §36) e Brentano (PE, prefácio).
11 Segundo ele, tomado num sentido muito “lato” (PE2).
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procuram compreender essa propriedade não podem, portanto, nunca ser de um tipo que a
definam como o fazem aqueles que “naturalizam” a Ética ao afirmar, por exemplo, que a
bondade é o prazer. Isso acarretaria redução e empobrecimento do quadro mesmo de nossa visão
de mundo. E é contra isso especificamente que Moore se revolta em sua metaética e é esse o
sentido de sua rejeição ao “naturalismo” ou, mais propriamente, ao reducionismo. Justificarei
esse ponto pela questão da co-extensibilidade dos conceitos e de como Moore compreende a
bondade como sendo co-extensa apenas consigo mesma.
Além do mais, tomando a falácia como um erro de identificação dessa propriedade sui
generis com alguma outra propriedade (notadamente com o prazer ou o prazeroso e com alguma
propriedade supersensível), os resultados do argumento da questão aberta mantêm-se
compatíveis. Tal argumento afirma que, sempre quando apresentamos uma definição da
bondade, ainda assim, podemos perguntar se isso é bom. O fato de as definições apresentadas
nunca esgotarem o significado da bondade comprova que o ponto central da formulação
mooreana está na afirmação de que se trata de conceitos diferentes, os quais não podem ser
meramente substituídos um pelo outro. Assim, por exemplo, a definição hedonista, apesar da
vagueza do que toma como prazeroso, é incapaz de apreender todo o conteúdo em questão. Mais
ainda: toda definição proposta, que não contenha em si mesma termos morais (termos como
virtude, vício, dever, certo, bom, mau12), que não seja de certa forma redundante como “bom é
bom”, jamais passará no teste deixando sempre a questão em aberto. Nesse sentido, o argumento
da questão aberta confirma a bondade como simples e único. No entanto, a leitura do argumento
da questão aberta não foi limitada a essa constatação. Este argumento foi compreendido de
forma mais ampla como apontando a existência mesma de um conceito, o que gera problemas na
compreensão da argumentação de Moore. Problemas que tiveram por conseqüência a
12 No Principia (PE, §1) Moore lista, como exemplos inegáveis de que estamos lidando com proposições da
Ética, os seguintes termos: virtue, vice, duty, right, ought, good e bad. No entanto, em RMC ele é mais cuidadoso
e dá a entender que sua compreensão da linguagem, ou ao menos do uso dos termos em questão, tornou-
se mais maleável e que uma análise mais cuidadosa é necessária a fim de se determinar o caráter ético de
uma expressão ou termo.
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interpretação, de certa forma justificável devido a certas afirmações vagas presentes no Principia,
da argumentação mooreana como apontando algo misterioso.
Para além dessa “rejeição”, procuro analisar a parte positiva da teorização mooreana no
que ela tem de mais interessante a fornecer no campo da metaética: uma resposta à pergunta de
como, defendendo uma ética não reducionista, podemos pensar as relações desse reino sui generis
com o reino das propriedades naturais.
Farei isso no capítulo final através de dois momentos. Ainda no interior do Principia
Ethica, abordo como sua primeira resposta leva a uma versão infeliz e insustentável dessas
relações que é o “não-naturalismo”. Como procuro mostrar, essa primeira versão, afora o
problema de batismo, erra e, nesse erro, passa a ser alvo das críticas a que habitualmente é
submetida, ao passar da constatação de que a Ética não pode ser reduzida para a afirmação de um
não-naturalismo não justificado.
A formulação da maturidade, no entanto, que como veremos encontra na noção do
caráter superveniente da Ética sua maior descoberta, esclarece ainda mais como a crítica de
Moore é feita contra o reducionismo e não, propriamente, contra o naturalismo. Nesse segundo
momento, baseado prioritariamente no seu artigo “The Concept of Intinsic Value”, abordo o
nascimento da noção de superveniência13 como uma resposta às dificuldades de caracterização de
um campo irredutível e autônomo, porém, dependente14.
Como veremos, trata-se tanto de uma transformação quanto uma adequação da resposta
de Moore, que passa da radicalidade aparente do não-naturalismo no Principia Ethica à noção de
superveniência e a noção envolvida de uma sobreposição necessária, entre a Ética e suas
propriedades e as propriedades naturais. Mais ainda: trata-se de uma revolução na própria história
da filosofia ao transformar a questão tradicionalmente vinculada a Hume de uma brecha radical
13 Sobre a origem da noção de superveniência na Ética ver, por exemplo, Kim:1984 p. 154s e
Horgan:1993.
14 O que é coerente com a leitura da falácia que apresento. Hare:1997 critica os naturalistas por
confundirem o caráter superveniente da Ética com um ou outro modo de acarretamento (“entailment”)
que possibilitaria uma mera redução.
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entre ser e dever. Como diz Robert Brandom, trata-se, sobretudo, de uma domesticação
(Brandom:1994 p.47).
***
Antes de começar, devo apontar um limite grave da dissertação que apresento: a ausência
de uma interpretação do Principia Ethica condizente com a complexidade das dificuldades
editoriais desse livro. O Principia reagrupa partes das conferências ministradas em Londres em
1899 e de suas dissertações de 1897 e 189815, juntamente com material mais recente (além de
trechos no interior de capítulos antigos, os capítulos IV e VI são inteiramente novos).
Esse mesmo momento, 1897-1903, é fundamental na transformação intelectual que
moldou o pensamento de Moore. É nesse período que Moore abandona definitivamente o
Idealismo16 que sustentava e se encaminha, junto com Russell, para a formulação do atomismo
que sustentará, de forma mais clara, a partir da segunda metade da primeira década do século XX.
Nesse sentido, essa transformação é sentida no Principia, as partes mais antigas e as mais
novas apresentam diferenças no tratamento da argumentação e reconheço esse limite como uma
falha grave para o projeto desenvolvido nessa dissertação. Apesar de não servir como justificação,
devo apontar que, com a possível exceção de Baldwin (que não leva esse ponto às últimas
conseqüências17), os comentadores que consultei também não visaram esse aspecto.
Dall’Agnol:2005, devido à própria motivação de sua obra que encontra mais do que tudo, em
Moore, um ponto de partida para seus próprios desenvolvimentos, e Hutchinson:2001,
15 Essa última publicada em 1991 sob o título de The Elements of Ethics. As outras duas não foram
publicadas.
16 “Refutation of Idealism” apareceu na Mind, em 1903.
17 Os desenvolvimentos que ele realizou em Baldwin:2004 são bem mais acabados e interessantes do que
aqueles presentes em sua monografia dedicada a Moore (Baldwin:1992).
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praticamente não se atém a esse aspecto. Sobel:2003 menciona e faz algumas observações sobre o
tema, mas nada com a atenção, talvez escolástica, que creio ser necessária a tarefa18.
Como defesa posso alegar que, para a dissertação derivada daí, seria necessário outro
autor, alguém mais cuidadoso e paciente com o objeto analisado, talvez alguém que, em termos
mooreanos, o tomasse como um valor em si e não como meio.
18 Uma tábua apresentando as passagens recentes e as reaproveitadas é fornecida por Baldwin na sua
edição do Principia.