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sistema singular de controle de constitucionalidade que coloca nosso País numa
posição de vanguarda.
Nesse novo quadro o controle difuso continuou a existir, mantendo-se
como a principal forma de controle de constitucionalidade no País. Isso pode ser
explicado, entre outras razões pela estreita legitimação ativa atribuída ao
Procurador-Geral da República no regime da Representação de
Inconstitucionalidade.
Mas este é apenas um dado que na verdade nos leva a uma outra
constatação: enquanto apenas o Procurador-Geral poderia argüir, por ação
própria, a inconstitucionalidade de uma lei, qualquer pessoa, por outro lado,
poderia questionar este mesmo ato normativo incidentalmente em um processo
a partir de um caso concreto.
Como dissemos, mesmo após a Constituição de 1988, que alargou a
legitimidade para propositura das várias ações referentes ao controle
concentrado, o controle difuso continua sendo o principal meio de
participação popular no controle de leis e atos normativos referentes a
certas políticas por vezes dissonantes com a Constituição (cf. CATTONI DE
OLIVEIRA, 2000:136).
Sem embargo, vivemos atualmente no País uma clara tendência de
centralização no que toca ao controle de constitucionalidade.
Essa tendência pode ser vista na adoção da Ação Declaratória de
Constitucionalidade (Emenda Constitucional n. 3/93), nas leis 9.868/99 e
9.882/99, que regulamentaram as diferentes ações do controle concentrado de
constitucionalidade. Também na Jurisprudência, como veremos, por exemplo,
10
no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 1 e 4. E ainda,
em boa parte da doutrina, que procura legitimar os anteriores principalmente a
partir de institutos próprios à Corte Constitucional alemã. Como se expressou
Álvaro R. Souza Cruz (2000:36): “O Brasil tem caminhado rapidamente para a
adoção da Jurisprudência de Valores pela postura do Supremo Tribunal Federal.
Abandonando uma tradição centenária de respeito ao controle difuso da
constitucionalidade, o STF está cada vez mais assemelhado ao que há de pior
na Corte Constitucional alemã”.
Procuraremos mostrar essa tendência e os fundamentos subjacentes,
mostrando que as citadas inovações vêm sendo postas em prática, na maior
parte dos casos, à custa da possibilidade da argüição incidental de
inconstitucionalidade, o que, segundo entendemos, não se coaduna com os
exigentes pressupostos do paradigma do Estado Democrático de Direito.
Pois, o que se percebe aqui, e tentaremos justificar isso ao longo do
trabalho, é, em primeiro lugar, uma má compreensão do papel do controle
concentrado de constitucionalidade, pois este não se refere a um controle da lei
(ou outro ato normativo) isoladamente, mas, fundamentalmente, do processo
legislativo subjacente, onde os cidadãos, destinatários daquelas normas, devem
se reconhecer também como seus co-autores
1
. Em segundo lugar, que é
improvável que o Supremo Tribunal Federal possa prever todas as variáveis
(isto é, todas as situações subjetivas de aplicação) frente à questionada lei; ao
contrário, somente os juízes dos vários processos em que a mesma tenha sua
1
O controle de constitucionalidade, mais do que controle de leis ou atos normativos, é um controle sobre o
processo de produção da lei. Essa noção, ainda que sob outra perspectiva, já era defendida por Kelsen
(1991:248). Sobre a defesa desta tese em uma teoria reconstrutiva, ver Marcelo A. Cattoni de Oliveira
(2001a:222ss).
11
constitucionalidade incidentalmente argüida é que estariam em condições de
decidir de forma a preservar um espaço em que os argumentos possam ser
considerados e até, que a boa-fé de quem agiu em conformidade com uma lei
presumivelmente constitucional possa, inclusive, ser levada em conta.
Criticaremos assim as citadas inovações legislativas e a posição do
Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado — ou melhor, a
forma como este tem sido entendido. Com o objetivo de mostrar a influência
germânica a conformar o que vem se desenhando como a nova dinâmica do
controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, estabeleceremos a
ligação entre ambos, traçando, em linhas gerais, o modo de funcionamento do
controle de constitucionalidade feito pelo Tribunal Constitucional alemão. Assim,
pretendemos superar alguns equívocos e expor problemas e deficiências
daquele, o que colocará em xeque a questão sobre até que ponto pode o
mesmo servir de modelo a ser seguido, principalmente pelo País.
Nosso estudo, no entanto, não se limita a criticar o controle concentrado
(ou, a leitura dominante feita dele). Exporemos também o controle difuso de
constitucionalidade, procurando suas origens e potencialidades. Ao mesmo
tempo, não perdemos de vista os seus problemas, advindos desde uma leitura
equivocada de alguns de seus institutos, até modificações que vem sofrendo
nos últimos anos que, em nome da “celeridade processual”, bem como da
“segurança jurídica” (princípios que também são usados para justificar as
modificações na forma concentrada), têm descaracterizado e diminuído a
importância da argüição incidental de inconstitucionalidade. Entre os seus
12
institutos, dedicaremos especial atenção ao Recurso Extraordinário, pela
importância institucional que possui.
Nosso objetivo foi tentar apontar que o controle difuso de
constitucionalidade (desde uma reconstrução de seu papel, passando inclusive
pelo Recurso Extraordinário) pode ser um meio através do qual não apenas se
possa defender os cidadãos face uma lei que lese seus direitos fundamentais.
Por outro lado, pela própria oportunidade de discussão do ato normativo frente à
especificidade do caso concreto, a argüição incidental dá oportunidade de
fomentar o dissenso e, conseqüentemente, abrir a possibilidade da formação do
consenso (ou ao menos de compromissos racionalmente fundados) acerca de
como se compreende a Constituição aqui e agora.
Como vamos defender ao longo do trabalho, há um grande desafio entre
nós, qual seja, que se abram canais para que as interpretações “não-oficiais”
sobre a Constituição sejam levadas em consideração. Os cidadãos muitas vezes
se vêem diante de leis diante das quais eles não se reconhecem, que por vezes
refletem apenas certas políticas governamentais de duvidosa
constitucionalidade. Na maior parte dos casos eles não podem atingir o sistema
concentrado de controle de constitucionalidade, não apenas pelo leque de
legitimados deste ser pequeno, mas também porque, mesmo quando
provocado, o Supremo Tribunal Federal não é capaz de avaliar uma lei “em
tese” considerando todas as situações subjetivas espalhadas pelo País.
Não pretendemos que uma decisão num processo singular irá provocar
alguma “transformação social”. Essa não é a questão, até porque o lugar próprio
para esse tipo de discussão são os espaços públicos de formação da opinião e
13
da vontade pública. No entanto, o paradigma do Estado Democrático de Direito
exige que os direitos em juízo sejam tomados a sério, já que dizem respeito a
um evento que, por definição, é único e irrepetível e portanto, deve-se dispor da
possibilidade de que os argumentos levantados pelas partes (além do substrato
constitucional em que estão inseridos) componham a decisão.
Isso no entanto poderá não ocorrer em sua inteireza caso alguma das
partes não possa argüir a inconstitucionalidade de uma lei, quer seja porque já
há um precedente do Tribunal sobre a questão, quer em face de uma decisão
anterior vinculante do Supremo Tribunal Federal em sede de controle
concentrado de constitucionalidade ou ainda, porque, depois de argüida a
inconstitucionalidade e já havendo inclusive decisão do juízo sobre a questão,
este seja obrigado a voltar atrás em função, por exemplo, de decisão do
Supremo Tribunal Federal que haja considerado a referida lei “liminarmente
constitucional”.
A atuação do controle de constitucionalidade influencia potencialmente, a
todos. Quando um juiz ou Tribunal declara que uma norma não está em
conformidade com a Constituição, podendo até, no caso do Supremo Tribunal
Federal, retirá-la do Ordenamento, isso tem implicações concretas sobre a vida
dos membros da comunidade, sobre suas relações jurídicas diárias, futuras e
até passadas (considerando a posição majoritária daquele Tribunal sobre a
nulidade ab initio de uma lei inconstitucional). Somando-se a esta constatação a
complexidade e diferenciação das sociedades modernas, é de suma
importância, por um lado, considerarmos a “relevância social” deste tipo de
sentença, dentro do quadro jurídico e mesmo político em que vivemos e, por
14
outro, a necessidade de uma maior participação discursiva dos destinatários
dessas sentenças no procedimento.
Daí a importância da discussão sobre qual modelo de controle
constitucionalidade é o mais adequado às necessidades sociais e ao Estado
Democrático de Direito: como deve ser a atuação daquele, qual deve ser o
alcance da declaração de inconstitucionalidade, quais devem ser os critérios
para estabelecer os limites, que novas formas de participação pluralista devem
ser asseguradas para a garantia de um procedimento democrático, pois, como
ensina José Alfredo de Oliveira Baracho (1995b:17): “O pluralismo não é apenas
uma maneira nova de afirmar a liberdade de opinião. É um sistema que vincula
a liberdade na estrutura social, não objetivando afastar o indivíduo da
sociedade”.
Para desenvolver o trabalho, dividimos a dissertação em três partes, além
da conclusão. Na primeira procuraremos mostrar a atual tendência à
centralização no que toca ao controle de constitucionalidade no Brasil, presente
na nova ação criada (Ação Declaratória de Constitucionalidade), e na
regulamentação daquela e da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental; mostraremos suas
origens no Direito alemão e os problemas que enfrenta lá e aqui no Brasil, bem
como sua prática afeta o sistema difuso de controle de constitucionalidade.
Num segundo momento, procuraremos traçar o marco teórico a partir do
qual poderemos compreender os pressupostos subjacentes ao paradigma do
Estado Democrático de Direito, o que implicará uma nova compreensão do
papel do Judiciário, numa sociedade complexa como nossa, que teve de
15
aprender a conviver com o dissenso e com o risco. Ao Judiciário não cabe mais
o papel de bouche de la loi, o que será retomado, mostrando algumas teorias
clássicas de interpretação do Direito, bem como teorias atuais que fornecem
uma resposta mais adequada do Direito como conjunto de regras e princípios.
Entre todas, estaremos tomando como marco a Teoria do Discurso de Jürgen
Habermas. O paradigma do Estado Democrático de Direito move-se sob uma
complexidade bem maior que os anteriores, pois deverá fornecer respostas às
questões que justamente provocaram a ruptura daqueles. Segundo
entendemos, a Teoria Discursiva de Habermas seria a mais adequada a
fundamentar uma proposta que dê conta dos exigentes pressupostos
subjacentes: como a crise gerada na modernidade com os excessos do
nazismo, a crise da “filosofia da consciência” (e com ela da “filosofia da
história”), os giros pragmático e hermenêutico e o desenvolvimento da noção de
“paradigma”, além da superação de perspectivas liberais e republicanas
(insuficientes para tratar dos desafios da democracia na atualidade) e sua
proposta procedimentalista. A teoria habermasiana nos permite melhor
compreender a complexidade social, e conseqüentemente, a complexidade do
Direito, assumida na atualidade; a formação da opinião e da vontade públicas; a
co-originalidade das autonomias públicas e privada; e finalmente o papel do
Judiciário. Dessa forma nos dará meios para reconstruir os fundamentos do
controle de constitucionalidade para além das discussões da dogmática
clássica, sem, contudo, fazer-nos cair no objetivismo da sociologia. Assim,
poderemos compreender que a função da Jurisdição e, particularmente, do
controle de constitucionalidade,
16
no marco do paradigma do Estado Democrático de Direito
e na perspectiva da superação da distinção entre direito
objetivo e direito subjetivo, é a da garantia das condições
processuais para o exercício da autonomia privada dos co-
associados jurídicos, no sentido da eqüiprimordialidade e
da interrelação entre elas (CATTONI DE OLIVEIRA,
2000:130).
No terceiro capítulo tentaremos sustentar as críticas feitas àquela
concepção dominante sobre a superioridade da argüição concentrada de
constitucionalidade a partir da reconstrução do sistema de controle difuso no
Brasil e de sua posição após a Constituição de 1988. Além disso, veremos a
forma como tem sido compreendido o Recurso Extraordinário e propor
alternativas para melhor garantia de coerência democrática da forma difusa.
Enfim, optamos por apresentar em primeiro lugar as questões que,
segundo entendemos, têm desafiado (externamente) o sistema de controle
difuso de constitucionalidade no Brasil. A seguir, procuramos esclarecer os
supostos teóricos assumidos na crítica à centralização do controle de
constitucionalidade e à defesa do controle difuso. Por último, apresentamos o
sistema de controle difuso e os problemas (internos) enfrentados por este.
Contudo, sempre foi nossa preocupação estar, em todo tempo, expondo nosso
tema (uma crítica à centralização do controle de constitucionalidade e uma
defesa do controle difuso) de forma a combinar uma postura reconstrutiva com
os supostos jus-filosóficos próprios a nosso marco teórico (a Teoria Discursiva
de Habermas).
17
Capítulo 1. A Centralização do Controle de Constitucionalidade no
Brasil
A Constituição de 1988 enumerou uma série de garantias processuais
para garantia do novo Direito que instituía, entre as quais, o controle de
constitucionalidade das leis e atos normativos, ferramenta essencial a um
Estado que se quer Democrático, ao possibilitar o afastamento de normas que
estejam em desarmonia com a Constituição, isto é, garantindo a posição
hierarquicamente superior da norma fundante.
Uma das conseqüências principais da Constituição escrita
é a sua supremacia jurídica sôbre tôda a legislação
ordinária, quer se trate de lei formal, quer de decreto
executivo, regulamento ou outro ato administrativo, bem
como de costume com fôrça de lei (MELO FRANCO,
1958:63).
Nesse âmbito a Constituição de 1988 trouxe grandes novidades.
Pressupõe-se que o cidadão, para além de ser mero destinatário das leis, se
reconheça como co-autor das mesmas; por outro lado, que o juiz, inserido numa
comunidade de princípios (cf. Cap. 2.) ao aplicar a lei a um caso concreto, leve a
sério as pretensões a direito levantadas por cada parte, o que deve ser
garantido por princípios constitucionais processuais que assegurem a formação
participada das decisões judiciais.
A Constituição de 1988 manteve o histórico sistema de controle difuso de
constitucionalidade das leis, consagrado entre nós desde a primeira
Constituição republicana. No que toca, entretanto, ao sistema de controle
18
concentrado, foi mantida a Representação de Inconstitucionalidade (agora com
o apropriado nome de Ação Direta de Inconstitucionalidade) e criadas novas
ações: Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental.
Com a Emenda Constitucional n. 3, de 1993, cria-se também a Ação
Declaratória de Constitucionalidade, objeto de diversas críticas. De fato, a
introdução da Ação Declaratória de Constitucionalidade causou grande
comoção entre os juristas pátrios, que viam nela desde uma contradição em
termos (já que toda lei possuiria presunção de constitucionalidade, princípio este
decorrente dos princípios da legalidade e do Estado de Direito), até
questionamentos quanto ao caráter vinculante das decisões definitivas de mérito
sobre os órgãos do Executivo e os demais órgãos do Judiciário (art. 102, §2º da
CF/88, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 3/93)
2
. Trataremos
mais detalhadamente da Ação Declaratória de Constitucionalidade à frente.
Ao lado disso houve a regulamentação da Ação Direta de
Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade pela lei
9.868/99 e da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental pela lei
9.882/99. Conforme teremos oportunidade de observar, as duas leis foram além
do prescrito constitucionalmente, acabando por assoberbar as competências do
Supremo Tribunal Federal. Para além de questões de procedimento, o que
ambas leis mostram é uma escolha pela centralização jurisdicional do controle
de constitucionalidade das leis a partir da adoção de institutos de origem
germânica.
2
Ver, e.g., pareceres de Souto M. Borges, Misabel Derzi, Geraldo Ataliba e Sérgio S. da Cunha. In:
Geraldo Ataliba (1993).
19
Percebe-se uma indisfarçável limitação da possibilidade de
questionamento — incidental — da constitucionalidade de um ato normativo,
limitação esta justificada muitas vezes sob o argumento de se evitar a
multiplicação de ações individuais argüindo tais atos normativos. Segundo José
A. Leite Sampaio (2002:41-42) há uma tendência em toda América Latina no
sentido de criação de Cortes Constitucionais ou da criação de ações de controle
concentrado — como veremos, pelo menos o Chile parece ser uma exceção.
Confirmando essa tendência têm ocorrido no Brasil alterações legislativas no
sentido de uma maior centralização do controle de constitucionalidade. Essa
tendência vem fundada principalmente numa determinada doutrina que
procuraremos apontar.
Essa limitação, causada pelas citadas inovações legislativas, tem se
concretizado em uma progressiva centralização do controle da
constitucionalidade das leis nas mãos do Supremo Tribunal Federal, isto é, quer-
se garantir maior “celeridade processual” e “segurança jurídica” a partir da
eliminação do número de ações nos vários juízos e Tribunais (ou pelo menos do
tipo de questões suscitadas) através de uma decisão única e vinculante do
órgão de cúpula do Judiciário
3
.
Nosso objetivo no presente Capítulo não é expor o sistema de controle de
constitucionalidade no Brasil (o que procuraremos fazer no Capítulo 3, por sua
reconstrução histórica) mas desde já mostrar a tendência centralizadora que se
pode perceber principalmente a partir da adoção da Ação Declaratória de
Constitucionalidade.
3
Em sentido semelhante, isto é, de que as recentes inovações legislativas mostram uma tendência à
concentração do controle de constitucionalidade, ver Álvaro R. de Souza Cruz (2000).
20
As considerações acima vão de encontro às aspirações de um Estado
Democrático de Direito. Ao contrário de centralização e “celeridade a todo
custo”, o Estado Democrático de Direito vem afirmar que a segurança jurídica
que um cidadão pode obter do Estado traduz-se, por exemplo, numa medida
jurisdicional ampla, onde ele tenha não apenas acesso livre, mas também que a
decisão seja o resultado de uma profunda discussão racional onde as partes
potencialmente puderam em conjunto reconstruir o evento e cada uma levantar
suas pretensões a direito; que o juiz, por sua vez, forme seu convencimento a
partir daquele produto discursivo, ao mesmo tempo em que sua decisão seja de
tal forma que transcenda os meros interesses de cada parte, ganhando com
isso a universalidade própria a uma comunidade de princípios (ver, infra, Cap.
2.1.); e ainda, que haja possibilidade de resgatar futuramente os argumentos
levantados (o que fica dificultado com mecanismos como o efeito vinculante, por
exemplo, mas pode se dar de forma mais completa num processo “ordinário”, cf.
Cap. 3.).
Assim, há que se considerar, com Häberle (1997:9) que, “todo aquele que
vive a Constituição é um seu legítimo intérprete”. Qualquer medida que restrinja
isso, como a eliminação factual do controle difuso de constitucionalidade das
leis, tende a fechar a comunidade de intérpretes, devendo, por isso, ser tida
como inconstitucional, como atentatória dos princípios do Estado Democrático
de Direito, visto como um projeto inacabado, sempre em (re)construção
4
.
4
Sobre a Constituição como projeto em aberto, retomaremos essa discussão no Capítulo 2 ao tratarmos do
paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.
21
1.1. A Influência Alemã na conformação do Controle de
Constitucionalidade
Há em todas aquelas inovações legislativas uma clara influência do
sistema alemão de controle de constitucionalidade, trazido até nós
principalmente pela doutrina de Gilmar F. Mendes
5
, inovações estas que, para
além de cada vez mais naturalizadas nos meios acadêmico e legislativo, têm
influenciado um grande número de decisões do Supremo Tribunal Federal
6
.
No seu livro “Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no
Brasil e Alemanha”, aquele jurista procura fazer um estudo comparado do
controle concentrado de normas perante o Tribunal Constitucional alemão e o
Supremo Tribunal Federal, buscando apontar diferenças e semelhanças entre
as duas formas de controle. A partir disso ele pôde chegar a algumas
conclusões, como:
5
Nesse sentido veja-se, e.g., Gilmar F. Mendes (1998a:77) e a alegada função “corretiva” do controle
concentrado de constitucionalidade, que permitiria superar a “insegurança jurídica” e “injustiças”
provocadas pela multiplicação de ações. Como teremos oportunidade de mostrar, esse entendimento não se
ajusta aos princípios do Estado Democrático de Direito nem ao menos à — uma compreensão adequada da
— segurança jurídica. Além dos textos citados, há um grande número de outros que o jurista tem desde já
algum tempo publicado acerca do sistema alemão de controle de constitucionalidade. Ver, e.g., “A
Doutrina Constitucional e o Controle de Constitucionalidade como Garantia da Cidadania”. Rev. de Direito
Administrativo, vol. 191, jan./mar. 1993, pp. 40-65; “A Declaração de Inconstitucionalidade sem a
Pronúncia de Nulidade da Lei — ‘Unverreinbarkitser Klärung’ — na Jurisprudência da Corte
Constitucional Federal Alemã”. Rev. de Informação legislativa, a. 30, n. 188, abr./jun. 1993; “Controle de
Constitucionalidade na Alemanha (a declaração de nulidade da lei inconstitucional, a interpretação
conforme a Constituição) e a declaração de constitucionalidade da lei na jurisprudência da Corte
Constitucional Alemã”. Rev. de Direito Administrativo, vol. 193, jul./set. 1993, pp. 13-32; “A Doutrina
Constitucional e o Controle de Constitucionalidade como Garantia da Cidadania — Necessidade de
Desenvolvimento de Novas Técnicas de Decisão: possibilidade da declaração de inconstitucionalidade sem
a pronúncia de nulidade no direito brasileiro”, Rev. da Faculdade de Direito da UFMG, n. 34 — Edição
Especial — 1994, pp. 241-273.
6
Além das que serão citadas, veja-se a recente decisão da Rcl. n. 2.256, j. 11/09/2003, principalmente o
voto do Ministro Gilmar F. Mendes.
22
Não se deve olvidar que a Constituição de 1988 contribuiu
para uma relativa concentração das questões
constitucionais no Supremo Tribunal Federal, mediante a
ampliação do direito de propositura e a limitação do
recurso extraordinário às questões constitucionais. (...) A
gradual evolução [?] de um sistema de controle incidente
para um modelo no qual a função principal do controle está
concentrado no Supremo Tribunal Federal, reforça o
caráter do Tribunal, como autêntica Corte Constitucional,
uma vez que ele não apenas detém o monopólio da
censura no processo de controle abstrato de atos
normativos estaduais e federais em face da Constituição
Federal, como tem a última palavra na decisão das
questões constitucionais submetidas ao controle
incidental
7
.
Importante observarmos que Gilmar F. Mendes no mencionado livro não
apenas cita diferentes tipos de controle e de decisões na Corte Constitucional
da Alemanha, mas também, ao compará-los com a atuação do Supremo
Tribunal Federal, procura mostrar que este já possuiria decisões em que faz uso
de institutos semelhantes aos daquela, como a declaração de nulidade parcial e
da interpretação conforme a Constituição.
No presente tópico estaremos buscando mostrar a “influência” do sistema
alemão sobre o brasileiro. Para isso mostraremos os principais institutos
daquele e os pontos de contato com o sistema brasileiro, a partir do que a
doutrina e a jurisprudência têm apontado. Desde já, no entanto, colocamo-nos
as seguintes questões: até que ponto é o sistema de controle de
constitucionalidade alemão um modelo para o Brasil? Qual a realidade e quais
os problemas enfrentados por aquele? A Jurisprudência dos Valores praticada
7
Gilmar Mendes (1998a:304). Em sentido semelhante, Carlos M. Velloso (1994:196): “É claro que, na
competência recursal extraordinária, o Supremo Tribunal também guarda a Constituição. É no controle
direto, em abstrato, todavia, que o Supremo Tribunal afirma-se como Corte Constitucional, guarda maior
da Constituição”. Ver ainda Anderson Cavalcante Lobato (1997:10ss) e Clèmerson M. Clève (1995:111).