INTRODUÇÃO
“Os poderosos tentam nos fazer crer que as ideologias morreram, mas não é
verdade. E se elas morreram precisamos ressuscitá-las. Não há utopia sem ideologia
e se não existe utopia não há esperança. Se não há esperança não há futuro. Como
conviver num mundo sem futuro?”
Bernardo Bertolucci
Sonhadores de utopias no cinema de Bernardo Bertolucci,é o titulo
desta dissertação que tem por principal objetivo demonstrar como o cinema
deste conhecido produtor italiano mantém vigente o conceito de utopia,
relacionando-o com a estética cinematográfica contemporânea.
O objeto de estudo configura-se na estreita relação do cinema com os seus
modos de representar a realidade social, política e econômica no esteio da
evolução ou revolução do pensamento, da subjetividade e do comportamento que
imperam na modernidade.
Questionando sobre a aparente falta de utopias nos tempos modernos
surgiu a hipótese de que o cinema poderia ser o meio de comunicação mais
apropriado para a produção e divulgação dos sonhos e utopias. A frase, em
epígrafe, do diretor Bernardo Bertolucci corroborou nosso pensamento e chamou
a atenção para seu filme Os Sonhadores o qual apresenta um vestígio do passado,
“um excedente utópico”, que traz os ideais dos jovens da Primavera de 68, jovens
portadores das esperanças em relação a um futuro possivelmente melhor e que,
2
naquele momento, atuaram como protagonistas nos cenários de mudanças
percebidas pela consciência antecipadora, manifestadas na transgressão e nas
novas formas estéticas requeridas pelas utopias.
Os procedimentos metodológicos adotados partem de um pressuposto
teórico alinhavado na história do pensamento que encontra no cinema o espaço
propício para representar o imaginário, o “ainda-não” e na sua linguagem
simbólica possibilita re-criar as vivências individuais e sociais.
Para atender a esses pressupostos, buscamos nas teorias de Ernst Bloch e
Karl Mannheim, as bases das categorias com as quais pretendemos analisar e
interpretar a representação estética das utopias no cinema de Bernardo
Bertolucci. As categorias inferenciais –consciência antecipadora, transgressão e estética da
utopia -, ancoram-se na idéia de que o filme , como suporte, fornece, do ponto de
vista dedutivo, os elementos suficientes para a construção lógica de uma estética
que parte da montagem de Os Sonhadores, passa para o contexto sócio- cultural e
se abre para horizontes de sentido na função metalingüística, uma vez que o
cinema de Bernardo Bertolucci remete às teorias e a história do cinema,
oferecendo uma gama de possibilidades ao espectador para a identificação e
interpretação seja, no plano do enquadramento , nos diálogos ou imagens em
movimento que facilitam o fluxo da diegese do filme.
Essas categorias se inter-relacionarão com as categorias referentes aos
recursos de produção cinematográfica - voz em off, close-up e metalinguagem-, e com
os traços estilísticos de Bernardo Bertolucci - o realmente acontecido, o socialmente
pensado, o poeticamente imaginado.
3
No primeiro capitulo deste trabalho “O cinema como lugar das utopias”,
abordaremos a origem do cinema atrelando-a ao conceito de modernidade e de
utopia, como se prefiguram no cinema de Bernardo Bertolucci.
A imagem, que em movimento é a alma do cinema, não apenas representa
a realidade, mas é um produtor de realidade quando o espectador não só vê a
imagem, algo visível, mas vê também, o que está por trás da imagem. Portanto, a
imaginação, associada à função criadora e ligada aos processos culturais de um
tempo histórico transmitido pelas imagens cinematográficas, podem contribuir
para preservar a ordem vigente ou introduzir novas configurações dos códigos
sociais, configurações essas que ao transgredirem estarão realimentando a
imaginação.
No segundo capítulo, Os Sonhadores de Utopias na filmografia de
Bernardo Bertolucci, analisaremos os filmes Antes da Revolução (1964), Beleza
Roubada (1996) e Os Sonhadores que têm em comum o protagonismo dos jovens
em 1968 .Interpretaremos o filme Os Sonhadores a partir das categorias inferenciais
acima enunciadas com a finalidade de vislumbrara a atualidade da imaginação
utópica no cinema de Bertolucci.
No terceiro capítulo, Vigência das utopias no cinema de Bernardo
Bertolucci, ressaltará o eixo central das narrativas dos filmes analisados - a
primavera de 68 - como o momento crucial da revolução estética na qual a
imaginação ocupa lugar do poder. Trataremos das estéticas de vanguarda que
fortemente influenciaram o cineasta assim como a importante contribuição deste
diretor para o cinema italiano. Enfim, salientaremos a metalinguagem, como um
recurso estilístico usado por este diretor para reivindicar as possibilidades do meio
4
a favor de fins humanos e sociais colocam o ser humano em conformidade com o
tempo e o espaço que lhe são “contemporâneos”.
Esta pesquisa está inserida no campo da comunicação pela vertente da
mídia cinematográfica, na área de concentração cultura midiática e na linha de
pesquisas que favorece o protagonismo social do espectador, quando este se
reconhece no passado histórico da tradição, na vivência de um presente incerto e
em um futuro que poderá “vir a ser” e que já é possível na ficção.
Neste sentido, o cinema de Bertolucci apresenta argumentos interessantes
para se constituir em um bom roteiro a ser explorado nesta Dissertação.
5
CAPÍTULO I
O cinema como lugar das utopias
“O ter lugar das coisas não tem lugar no mundo.
A utopia é a própria topicidade das coisa”
G. Agamben
O cinema como lugar das utopias situa-se nos tempos modernos. Justifica-
se o uso do plural para nos referirmos a esse período da história - modernidade -
marcado por mudanças profundas e radicais advindas das Revoluções Francesa,
Industrial e Tecnológica, as quais afetaram de maneira e forma desiguais o
mundo. Como fruto e conseqüência do desenvolvimento gerado por essas
revoluções nasce o cinema, que como indústria cultural, como arte, representa e
simboliza o imaginário sócio-cultural desse período
1
.
Imagem, imaginação e imaginário radicam do latim imago-ginis, significando,
a primeira, a representação de um objeto ou a reprodução mental de uma
sensação na ausência da causa que a produziu. Essa representação mental,
consciente ou não, é formada a partir de vivências, lembranças e percepções
passadas e passíveis de serem modificadas por novas experiências. Imaginário é,
1
Indústria Cultural é aquela cuja tecnologia permite a reprodução em série e a exploração para fins
comerciais dos bens culturais. A indústria cultural não apenas adapta seus produtos ao consumo das
massas, mas, em larga escala, determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas
enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto,
assim como cada um de seus elementos, às condições que representam seus interesses. A indústria
cultural traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele
exerce um papel específico, qual seja o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido
a todo o sistema. Os pensadores, textos escolhidos (1980: vol.XVI).
6
portanto, o vocábulo fundamental que corresponde à imaginação como sua
função e produto. Composto de imagens mentais é definido a partir de muitas
óticas diferentes, dentre as quais escolhemos a apresentada por Durand (1997),
para quem o imaginário é o “conjunto das imagens e das relações de imagens
que constitui o capital pensado do homo sapiens”, o grande e fundamental
denominador em que se encaixam todos os procedimentos do pensamento
humano. É uma faculdade intelectual que possibilita a realização e representação
da ordem da realidade-social-psíquica, sempre mediada e transformada
simbolicamente em cristalizações do sentido, pela “veemência ontológica de uma
intenção semântica”.
A imaginação individual cria mundos impossíveis e fantásticos, mundos
oníricos que na modernidade podem ser recriados ou representados no
cinema.No imaginário social as sociedades esboçam suas identidades e
objetivos, plasmam visões de mundo, modelam condutas que se expressam por
utopias ou ideologias. Portanto, imaginar, assim como sonhar, é inerente a
condição humana e se produz na relação entre o sujeito e o meio sócio-cultural e
em uma dinâmica de produzir e ser produto de imagens.
A palavra imagem, como já vimos, significa a representação de um objeto
ou a reprodução mental de uma sensação na ausência da causa que a produziu.
Essa representação mental, consciente ou não, é formada a partir de vivências,
lembranças e percepções e é passível de modificação por novas experiências.
Bem, para melhor compreensão buscamos aporte nos estudos de RECHIA
(2005:3, 22)
7
“Partindo da conceituação normativa de que imaginar é a
possibilidade de evocar ou produzir imagens independentemente da
presença do objeto ou do ser a que se refere, por meio das lembranças e
das intuições, submetidas às coordenadas de espaço-tempo, imaginar está
diretamente associado à função criadora, e está intrinsecamente ligado
aos processos culturais e a um tempo histórico determinado.
Ancorei-me nas concepções de Durand (1983, 1989 e1998),
para quem o imaginário é uma rede de imagens que, em relação umas
com as outras, vai dando sentidos ao mundo. Necessário assinalar que
tais imagens não se organizam de qualquer modo, mas com certa lógica,
com determinada estrutura.
Assinalamos que o diretor do filme, ao contar a história, tenta
transmitir por meio de imagens cinematográficas o imaginário, tenta
atingir as aspirações, os medos, as esperanças e a alteridade do
personagem. ...O imaginário social se expressa por ideologias e utopias, e
também por símbolos, alegorias, rituais e mitos. Tais elementos plasmam
visões de mundo e modelam condutas e estilos de vida, em movimentos
contínuos e descontínuos de preservação da ordem vigente ou introdução
de novas configurações dos códigos sociais. A imaginação social, além de
fator regulador e estabilizador, também é a faculdade que permite que os
modos de sociedade existentes não sejam considerados definitivos, os
únicos possíveis, e que possam ser concebidos outros modelos.”
2
Na presente dissertação, o capitulo - O cinema como lugar das utopias
- objetiva refletir sobre como o cinema, posicionado como uma das grandes
2
RECHIA, Tânia Maria. O imaginário da violência em minha vida em cor de rosa.Tese de
doutorado em Educação. 2005. UNICAMP, Campinas.
8
invenções da modernidade, também é um meio eficaz para representação da
realidade a partir dos efeitos de sentido que é capaz de produzir e como, em
seu caráter “prefigurativo”, isto é, de poder representar aquilo que ainda não
existe, mas que poderá existir, pode projetar, manifestar a um outro sujeito, o
receptor, a existência de um” possível” mundo melhor. Para melhor
compreensão de tal pensamento, nos reportaremos ao filme Os Sonhadores, de
Bernardo Bertolucci, destacando-o do conjunto de sua obra que, entretanto,
também nos permitirá, por meio dos temas recorrentes, identificar a
representação do imaginário utópico que tem um seguro recurso estético nas
imagens em movimento.
Inserido nesse capitulo, o item O cinema e a utopia na modernidade
abordará o nascimento do cinema e o contexto da época em que isso ocorre: a
modernidade. O panorama que vê o nascer e o desabrochar desse meio de
comunicação vê também a transformação de um ser humano que passa a
conviver com novas estruturas sociais e econômicas, com novas formas de
produção, com o desenvolvimento tecnológico, com a mudança da detenção de
riqueza do meio rural para o urbano. As transformações propiciadas pelas
revoluções ocorridas implicaram também em mudanças nos costumes e valores
humanos, e nas percepções de um sujeito que, acostumado à tranqüilidade que
marcava a sociedade anterior, se vê submetido a um mundo dominado pela
velocidade e bombardeado pelos incrementos tecnológicos, pelas impressões e
choques que configuram as cidades às quais aflui grande fluxo de pessoas.
E nesse tempo, nessa sociedade de sujeitos padronizados,
“massificados”, alguns preconizam o fim das utopias; mas, discordando dessa
9
colocação, no item Utopias e utopia nos reportamos aos pensadores
Mannheim e Bloch, querendo demonstrar que esse princípio - a utopia em
diferentes formas e diversas interpretações - é inerente ao ser humano e sua
presença nas sociedades históricas é uma constante desde os milenares
tempos bíblicos. Por isso, ainda que com alteração de perspectiva, a dimensão
utópica está vigente na contemporaneidade e pode ter no cinema de Bernardo
Bertolucci, com sua capacidade de representação do imaginário social e
individual, o seu tempo e o seu lugar.
Em Os motivos filmográficos de Bernardo Bertolucci tentaremos
resgatar, na trajetória de sua filmografia composta por vinte e dois filmes até
2004, representações de motivos ideológicos - geralmente ligados a um
intelectual engajado e aos conflitos dualísticos entre as concepções políticas de
direita e esquerda - e os motivos utópicos, que diferem dos ideológicos por
provocarem rupturas com a ordem social vigente. A identificação da dimensão
utópica, da busca de um mundo melhor, que ocorre de forma latente ou
manifesta, poderá ser encontrada na representação imagética dos jovens em
suas diversas relações: social, amorosa, subjetiva, assim como nas
transgressões simbolizadas na forma de incesto, de nudez e também na poética
e em alguns tipos de experimentação narrativa ou de linguagem proposta pelo
diretor. Esses motivos podem ser identificados como elos com a realidade
situada em um contexto histórico-espacial e com a representação de uma
realidade possível de vir a ser.
10