5O que me proponho com esta tese é mesmo dar uma ideia do que o fado
é, não só do lado mais práctico – como a sua história, os seus cantores e os
poetas que tiveram mais notoriedade – , mas também dum lado mais
“abstracto”. Queria dar uma ideia da atmosfera que o fado cria, não do que se
ouve quando um fadista entoa o seu canto, mas do que se sente.
O outro assunto do qual queria tratar é Coimbra. É uma cidade de que
gosto muito e que, na minha opinião, tem muito para dar às pessoas. Quem
tem a oportunidade de viver em Coimbra uns tempos, quando a deixa trá-la
no seu coração e fica à espera do dia em que poderá lá voltar.
Coimbra é uma cidade universitária, como tal é povoada de jovens que
passam “nas rivas do Mondego” os seus anos académicos. Durante estes anos
vivem sozinhos e, entre uma noite de regozijo e a outra, aprendem o que são
as regras e as tradições. As regras ditadas pelo código da praxe académica, as
tradições que uma universidade antiga como a de Coimbra tem e o orgulho
que tem em mantê-las.
Para além da sua vida universitária, em Coimbra o fado é muito
importante, como se verá. São vários os lugares que inspiraram letras de
fados, por terem uma importância histórico-lendária particular, por
desempenharem uma particular função para o fado, ou simplesmente, como o
rio Mondego, por terem uma certa magia, inexplicável racionalmente, mas
mesmo assim indubitável.
6CAPÍTULO 1 - HISTÓRIA
O fado nasceu um dia
Em que o vento mal bulia
E o céu o mar prolongava,
Na amurada dum veleiro,
No peito dum marinheiro
Que estando triste, cantava.
José Régio
7FADO DE LISBOA
As origens do fado de Coimbra levam-nos a falar do fado de Lisboa, o
canto das ruas da capital. Este canto, com as suas cadências melancólicas e o
pesar nas vozes de quem o entoa, era inicialmente – e talvez ainda seja, além
da sua hodierna importância histórico-tradicional – uma forma de expressão
da tristeza e da saudade do povo de Lisboa. É só depois de ter ganhado
popularidade na capital que chegou até Coimbra, onde o seu nível poético
cresceu graças ao ambiente universitário.
Mais difícil é descobrir com certeza como nasceu o fado de Lisboa.
Uma hipótese é que tenha nascido dos marinheiros, que cantavam canções
tristes que tinham o mesmo ritmo onduloso e balanceante do mar; poderia ser
que a sua expressão saudosa venha das longas viagens marítimas dos homens
de mar portugueses. Ou talvez a origem deste canto seja o fim da escravidão,
em 1761: será que foram os escravos libertos, entregues aos vícios e ao roubo,
a começar a cantar fados nas ruas de Lisboa? Ambas estas suposições
parecem plausíveis, mas a teoria mais acreditada faz do “lundum” (isto é uma
dança congolês considerada “indecente” pela sociedade da época) o pai do
fado de Lisboa.
Os “calundus” eram danças rituais dos negros; foi em 1735 que
começaram pela primeira vez a ser chamadas de “lunduns”, e inculpadas de
ser indecentes. De facto, o “lundum” (ou “lundu”), uma vez deixado o seu
âmbito ceremonial, foi conhecido como uma dança folgazã a base de volteios e
umbigadas; neste período pode-se começar a falar da dança do fado, que
juntava o castanholado do fandango
1
às umbigadas do “lundu”, acrescentando
o canto, acompanhado à viola. A participação dos brancos nesta dança nascida
1
Elemento típico da dança do fandango são as castanholas, “instrumento de percussão composto de duas
peças de madeira ou marfim em forma de concha, ligadas por cordel aos dedos que as fazem bater uma
contra a outra” (J. Almeida Costa, A. Sampaio e Melo, Dicionário da língua portuguesa, 7ª ed., Porto,
Porto Editora, 1995).
8dos bailes negros era muito maior, e a dança do fado começou a sua expansão,
chegando do Brasil até Portugal.
Foi nos fins da década de 70 do século XVIII que o “lundu” apareceu
em Lisboa, que então como agora tinha uma variedade étnica e cultural muito
interessante e fundamental para a aceitação de novas experiências socio-
culturais. As novidades que os negros traziam eram filtradas pelos mulatos já
residentes na terra lusitana ou então pelos brancos interessados na produção
para o grande público – coisa que se tornou vital para o fado, porque foi
evidentemente graças a estes últimos que conheceu os palcos dos teatros a
partir da década de Oitenta daquele século.
O testemunho mais antigo da presença do “lundu” como canto e dança
em Lisboa remonta ao ano 1784: fala-se dele num entremez, intitulado “Os
casadinhos da moda”, numa cena em que a protagonista é uma mulher
grávida, que sente desejo de caranguejos, depois de ter ouvido uma vendedora
negra a gritar na rua. O cabelereiro que tinha aparecido para pentear o casal,
ao entrar da vendedora, põe-se a dançar desafiando: “A preta ha de saber
bailar a Fofa
2
”. Daqui começa a dança, não da fofa
3
, mas sim do lundu, que a
vendedora negra começa a cantar: “Baia blanco os Lundum, faze os gaiofa. /
Vozo canta tão be? Canta comigo”
4
. O cabeleireiro responde, surpreso: “Anda
lá, canta, e baila, que eu te sigo”
5
.
Neste ponto, a indicação de cena é “Cantão os dois”, de maneira que os
dois comecem a cantar e dançar este lundu:
2
José Ramos Tinhorão, Fado. Dança do Brasil cantar de Lisboa – o fim de um mito, Lisboa, Caminho,
1994, p. 39.
3
A fofa é uma dança brasileira, definida num folhete editado clandestinamente em Lisboa em 1752 como
“som do Brasil com propriedade para vodas e galhofas”. A coreografia desta dança tomava inspiração das
umbigadas das danças africanas e do fandango espanhol. Os tratos típicos do fandango – como o sapateio
– prevaleciam respeito aos dos batuques (ibidem, p. 21).
4
Ibidem, p. 39.
5
Ibidem.
9Todo os Pleta tem seu Pleto.
Que dá malufo, e macaia
Vai nos fessa dos Talaia,
E baia os Fofa, e Lundum.
Que gosso, que fessa,
Bolir cos cabeça,
Oiar dos macaco,
Mexer cos mataco
Com todo os primoro
Ao som dos tamboro,
Que faze tum tum!
6
Ao entrar na sociedade lisboeta, o “lundu” – que começou a sua
divulgação entre as camadas mais baixas da sociedade branca e a classe
média – deixou de atribuir à coreografia o papel principal, em favor do canto.
Foi Domingos Caldas Barbosa que, já no fim do século XVIII,
começou a dar uma estrutura de canção àquela que, até aquele momento,
tinha sido uma parte cantada improvisada na dança do “lundum”.
Caldas Barbosa nasceu no Brasil por volta do 1740 e foi para Portugal,
trazendo os seus dotes poéticos e musicais para a aristocracia portuguesa.
O fado tem, então, a sua origem na dança: quanto à sua coreografia, há
versões diferentes. Refere-se duma dança do fado em que uma pessoa,
homem ou mulher, dançava no meio de outras, sozinha, e depois de algum
tempo aproximava-se a outra pessoa que lhe agradasse, dançando em frente
desta, e enfim batia palmas, a significar que tinha escolhido quem ia dançar
no meio em sua vez
7
. Pinto de Carvalho dá outra versão da dança: um
bailarino tinha de dançar ao ritmo da música no meio de 12 ovos dispostos no
chão, que obviamente não podia partir
8
.
6
Ibidem, p. 40. Malufo: cachaça; macaia: fumo.
7
Ibidem, p. 52.
8
Eduardo Sucena, Lisboa, o fado e os fadistas, Lisboa, Vega, 1992, p. 12.
10
As vicissitudes históricas de Portugal e Brasil ajudaram a dança e o
canto do fado na sua difusão: o regresso do rei D. João VI para Lisboa, em
1821, coincide com o começo de uma época difícil para a terra lusitana. O rei
voltou com toda a corte – depois de quase quinze anos de invasões francesas,
tramas espanholas e domínio militar inglês – com ideias de poder absoluto,
que foram acolhidas com uma atitude revolucionária que durou até 1828, ano
em que D. Miguel subiu ao trono.
A pergunta que a este ponto pode surgir é: como é que todo isso pode
ter ajudado o fado a crescer? A resposta está na procura de tranquilidade que,
num período tão difícil do ponto de vista político, económico e social, é
natural e fundamental. É verdade que a música não pode ser considerada
como um elemento essencial da quotidianidade das pessoas, mas, mesmo
assim, faz parte da vida de todos. A expressão dos sentimentos que está na sua
base dá a possibilidade de ter um pouco de alívio; mesmo só cantarolar um
motivo é uma maneira de externar emoções, porque estas estão ínsitas nas
notas que o compõem. Foram, então, as camadas que mais precisavam de
exteriorizar o seu mal-estar, as mais baixas da sociedade, que encontraram no
fado um pouco de sossego no seu dia-a-dia, e é esta a razão pela qual se diz
que o fado de Lisboa nasceu na rua.
Acreditando nesta versão da história do fado, a data do seu nascimento
seria então na segunda década do século XIX; a dança tinha ainda uma
importância maior do que o canto, por isso pode-se falar nestes anos de uma
fase de transição do lundu para o fado.
É mais ou menos em 1830 que o canto ganha o papel principal;
costuma-se fazer coincidir esta mudança com outra inovação muito
importante: é neste periodo que a viola é substituida pela guitarra portuguesa.
A adopção da guitarra ajuda a dar ao fado uma fisionomia própria que vem do
uso dum instrumento tão ligado à tradição e à alma popular. Como é claro,
depois desta fase o fado começa a representar Portugal e o passo seguinte é,
então, o teatro.
11
A estreia do fado nos palcos portugueses situa-se por volta do fim dos
anos ’80 do século XIX
9
. A partir deste momento, a estrada é a subir: o fado
deixa de ser popular apenas nos bairros pobres, entra nas festas dos fidalgos,
nos salões aristocráticos, nas casas burguesas.
Frederico de Freitas, distinto músico, regista que a popularidade e a
ascenção para a alta sociedade leva o fado à afinação musical: já há homens
de letras e com cultura musical que se ocupam de compor novos fados, que
vão perdendo a morbidez dos assuntos. Nem todos ficaram felizes com esta
mudança radical, e apareceram então fados que expressavam a lamentação
por esta, que algumas pessoas consideraram uma perca de espontaneidade:
Ó fado, que foste fado,
Ó fado que já não és,
Ó fado, que te viraram
Da cabeça para os pés!
10
O fado de Lisboa, então, parece ter nascido no Brasil, onde tinha
chegado de África. Mesmo assim, a união que se estabeleceu entre o fado e o
povo lisboeta não deixa cindir os dois; pelo contrário, diminui a importância
que se pode dar às origens duma música que, neste caso, leva nos seus tons a
alma do povo que a acolheu. De facto, como nos ensinam as palavras de
Frederico de Freitas,
o que legitima, justifica e define uma criação popular não será, porventura,
a sua adaptação, a sua aceitação, a sua identificação com a idiossincrasia desse
mesmo povo? Sendo assim, o fado é legitimamente português.
11
9
Ibidem, p. 15. Segundo Eduardo Sucena, o ano preciso da entrada do fado nos palcos portugueses seria
1888; é neste ano que o fado teve a sua primeira representação num teatro.
10
Ibidem, p. 16.
11
Ibidem.
12
13
Coimbra à noite é tão triste,
Tão sonhadora ao luar!...
Que o estudante não resiste,
Sai prà rua e vai cantar.
Lucas Junot
FADO DE COIMBRA
Coimbra é, por assim dizer, uma cidade subjectiva: ela é aquilo que cada um
tem dentro de si. A saudade antecipada com que a ela se aporta e a saudade
prospectiva com que nela se vive. Mais verdadeira na lenda e no clima de
encantamento que se gera no espírito de cada um do que propriamente na história
das suas pedras, Coimbra é uma cidade de brisa e de ternura.
E é deste clímax mágico e secreto que o fado nasce, como expressão natural
e gratuita dum íntimo cantar semeado no sangue do estudante.
Há em todas as mãos uma guitarra e em cada garganta uma canção, e se são
apenas alguns que tocam e cantam, isto não quer dizer que o fado não esteja dentro
de todos aqueles que um dia viveram e amaram Coimbra.
Porque a história de Coimbra é feita pelo estudante, e a guitarra e o canto
significam de certo modo a história do estudante de Coimbra.
12
Nas palavras de Manuel Alegre percebe-se como o fado de Coimbra
pertença à sua cidade e aos seus estudantes. O fado não faz simplesmente
parte da história de Coimbra. Dum lado, pode-se dizer que o fado tem um dos
papéis principais na história da cidade. E para contar esta história, temos de ir
até à Idade Média, porque parece que, antes de encontrar o fado de Lisboa,
em Coimbra já existesse uma música particular, que vinha da Provença. Eram
as “cantigas de amigo” e as “cantigas de amor”, que já se escreviam nos
tempos de D. Dinis – ele mesmo, de facto, deleitava-se em escrever poemas.
12
Manuel Alegre, citado por José Niza, Fado de Coimbra I, Lisboa, Ediclube, s.d., p. 35.